terça-feira, 29 de março de 2011

Ode os Gatos

    Os animais foram 
    imperfeitos, 
    compridos  de rabo, tristes 
    de cabeça. 
    Pouco a pouco se foram 
    compondo, 
    fazendo-se paisagem, 
    adquirindo pintas, graça, vôo. 
    O gato, 
    só o gato 
    apareceu completo 
    e orgulhoso: 
    nasceu completamente terminado, 
    anda sozinho e sabe o que quer.
    O homem quer ser peixe e pássaro 
    a serpente quisera ter asas, 
    o cachorro é um leão desorientado, 
    o engenheiro quer ser poeta, 
    a mosca estuda para andorinha, 
    o poeta trata de imitar a mosca, 
    mas o gato 
    quer ser só gato 
    e todo gato é gato 
    do bigode ao rabo, 
    do pressentimento à ratazana viva, 
    da noite até os seus olhos de ouro.
    Não há unidade 
    como ele, 
    não tem 
    a lua nem a flor 
    tal contextura: 
    é uma coisa só 
    como o sol ou o topázio, 
    e a elástica linha em seu contorno 
    firme e sutil é como 
    a linha da proa 
    de uma nave. 
    Os seus olhos amarelos 
    deixaram uma só 
    ranhura 
    para jogara as moedas da noite
    Oh pequeno 
    imperador sem orbe, 
    conquistador sem pátria 
    mínimo tigre de salão, nupcial 
    sultão do céu 
    das telhas eróticas, 
    o vento do amor 
    na intempérie 
    reclamas 
    quando passas 
    e pousas 
    quatro pés delicados 
    no solo, 
    cheirando, 
    desconfiando 
    de todo o terrestre, 
    porque tudo 
    é imundo 
    para o imaculado pé do gato.
    Oh fera independente 
    da casa, arrogante 
    vestígio da noite, 
    preguiçoso, ginástico 
    e alheio, 
    profundíssimo gato, 
    polícia secreta 
    dos quartos, 
    insígnia 
    de um 
    desaparecido veludo, 
    certamente não há 
    enigma 
    na tua maneira, 
    talvez não sejas mistério, 
    todo o mundo sabe de ti e pertence 
    ao habitante menos misterioso, 
    talvez todos acreditem, 
    todos se acreditem donos, 
    proprietários, tios 
    de gatos, companheiros, 
    colegas, 
    discípulos ou amigos 
    do seu gato.
    Eu não. 
    Eu não subscrevo. 
    Eu não conheço o gato. 
    Tudo sei, a vida e seu arquipélago, 
    o mar e a cidade incalculável, 
    a botânica, 
    o gineceu com os seus extrávios, 
    o pôr e o mesnos da matemática, 
    os funis vulcânicos do mundo, 
    a casaca irreal do crocodilo, 
    a bondade ignorada do bombeiro, 
    o atavismo azul do sacerdote, 
    mas não posso decifrar um gato. 
    Minha razão resvalou na sua indiferença, 
    os seus olhos tem números de ouro.

    (Navegaciones y Regresos, 1959)

Nenhum comentário: